Na sucessão de passos que marcam a agregação política da Europa, a reforma institucional que, do conceito de “comunidade”, evoluiu para o de “união”, bem como a Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia, solenemente proclamada em 7 de dezembro de 2000, estimularam o debate sobre a adoção de uma Constituição européia, cujo anteprojeto foi apresentado recentemente, com grande repercussão em todo o mundo ocidental.
Alguns entendem que a Constituição escrita seria um bloqueio a mais no caminho da própria União Européia, dificultando a entrada de novos membros e a acomodação dos atuais. Nesse sentido, alega-se que admitir tal Constituição seria criar um superestado europeu pela agregação dos atuais estados nacionais, os quais ainda não estariam preparados para perder sua soberania. Mas existem aqueles que defendem a Constituição como forma de dar à União Européia um acabamento necessário, mais realista ou mais legítimo, sem que isso implique perda de soberania dos estados-membros. De qualquer modo, o fato é que atualmente se desenrola na Europa um processo de constitucionalização, no qual a perda da soberania é a tormenta que assombra os Estados europeus.
No plano interno, ou seja, internamente aos estados, constitucionalização significa abrigar certa matéria na Constituição. Por exemplo, no Brasil, o retardo do novo Código Civil fez surgir na Constituição uma ampla e inovadora normação da família, com a criação de figuras, como a união estável e outras, que atualizaram o direito civil, o qual passou, aí, por um processo de constitucionalização. Mas, externamente aos estados, como ocorre quando se refere à Europa atual, o termo “constitucionalização” tem acepção diferente. Significa o aprofundamento da integração de uma sociedade política que, depois de nascer na ordem internacional como “mercado comum” e evoluir na ordem supranacional como “comunidade”, agora busca consolidar-se como “união” por uma ordem jurídica constitucional, assumindo como estatuto jurídico uma Constituição e, com isso, superando definitivamente o estágio de tratados e acordos.
Assim pretendida, mas tormentosa, essa consolidação constitucional endereça à doutrina a questão de saber qual é a exata correlação entre a Constituição e a soberania do Estado. É possível consolidar mediante a Constituição uma entidade política não soberana? Essa indagação se torna mais relevante quando se nota que os Estados europeus parecem recalcitrantes em ceder algo de sua soberania e, por isso, talvez rejeitem a adoção de uma Constituição européia.
Os livros de direito constitucional lecionam que a Constituição escrita tem servido de instrumento para alicerçar um Estado soberano, seja reformando um Estado unitário, seja formando um Estado federal pela federação de outros estados, que lhe cedem a soberania, passando a ser conceituados não mais como soberanos, porém apenas como autônomos. Mas essa conceituação lecionada não é a primordial: não é a da primeira ordem. Não surgiu na primeira ordem federativa constituída de entes políticos expressamente chamados de estados.
Essa primeira ordem, que revelou o primordial, ocorreu na América; e nessa América pioneira, mesmo com a constituição do Estado federal, os estados federados que o constituíram continuaram a se chamar individualmente de estado e, na sua união, de Estados Unidos. O que explica outro fato, também sucedido na América, o qual parece esdrúxulo, porque tem sido incompreendido. E este fato ocorreu no Brasil. A saber.
Quando a federação estadunidense se tornou o modelo de descentralização pelo qual se desagregou o Estado unitário brasileiro, juridicamente a adoção desse modelo se fez mediante o Decreto nº 1, de 15 de novembro de 1889. O artigo 1o desse Decreto proclamou “como forma de governo da nação brasileira a república federativa”. O artigo 2o determinou: “As Províncias do Brasil, reunidas pelo laço da Federação, ficam constituindo os Estados Unidos do Brasil”. E o artigo 3o arrematou: “Cada um desses Estados, no exercício de sua legítima soberania, decretará oportunamente a sua constituição definitiva, elegendo os seus corpos deliberantes e os seus Governos locais.” Sublinhe-se: os Estados em que se transformaram as Províncias do Império deveriam exercitar sua legítima soberania para elaborar suas constituições estaduais. Isso, porque – uma vez transformadas em Estados – as Províncias brasileiras passaram a ter uma soberania que não tinham, mas que agora recebiam, ainda que formalmente, a fim de poderem elaborar suas constituições e, assim, como estados devidamente constituídos, serem reunidas pelo laço da federação. A federação lhes deu a soberania, como condição de ser instituída. E tudo isso, visando a constituir os Estados Unidos do Brasil bem a molde dos Estados Unidos da América.
Desses dois exemplos logo se vê que a extinção da soberania dos estados federados não é forma inata, nem condição imprescindível à constituição de uma federação, seja por agregação de estados em um estado federal, seja por segregação de estados a partir de um só estado. No seu princípio histórico, que fixou sua concepção primordial, a federação não foi mais do que um aprofundamento da confederação, como nos Estados Unidos da América. Ou foi, como no Brasil, a desagregação de um Estado unitário em Estados federados. Mas, em ambos os casos, foi concebida sem privar de soberania os estados membros. Estes continuaram ou passaram a se chamar estados. No Brasil, a instituição da federação até mesmo lhes outorgou a soberania para que pudessem ser assim chamados.
Na prática histórica, a confederação e a federação nem sempre se apartam uma da outra, mas não raro continuam uma na outra, dentro de um processo histórico, no qual de início a federação foi considerada uma intensificação da confederação por uma união mais perfeita entre os estados membros. Tanto, que a Suíça, mesmo após constituir-se em federação pela adoção de uma Constituição, continuou a chamar-se Confederação Helvética, como oficialmente ainda hoje se chama. Houve, aí, um processo de continuação que redundou numa união mais perfeita. Mas essa União, como a dos Estados Unidos, somente acarretou a perda de soberania dos membros da confederação adensada pela federação porque o seu processo histórico realmente chegou até esse ponto. Mas poderia não ter chegado; e isso não lhes impediria a adoção de uma Constituição para aprimorar a sua união.
Tal é o caso da Europa atual. Se seus estados-membros adotarem uma Constituição para promover uma união mais perfeita, daí não resultará necessária e automaticamente a perda de sua soberania. O fato histórico – o princípio primordial – é que a Constituição de uma federação, ainda que implique relativização, por si só não implica privação de soberania. Não implica nem sequer perda do nome “confederação”.
No correr do constitucionalismo – no afã de discernir entre confederação e federação, separando logicamente como modelos dois fenômenos que historicamente não foram separação, mas continuação – a doutrina moldou os dois protótipos nos quais se fixou que a confederação seria baseada em tratado internacional sem perda de soberania dos estados-membros, os quais teriam por isso o direito de secessão, ou seja, poderiam separar-se do todo, ao passo que a federação, nascendo de uma Constituição, importaria perda da soberania e, conseqüentemente, do direito de secessão.
No entanto, esses dois protótipos históricos não condizem exatamente com o processo histórico de que foram extraídos, ao menos no início desse processo. Basta ler o documento em que se lavrou a confederação norte-americana, para ver que já se estabelece nele uma união perpétua e não seccionável, à qual os estados-membros cedem um considerável montante de seus poderes. Aliás, por isso mesmo, esse documento não se chamou tratado. Chamou-se “Artigos de Confederação e União Perpétua”. Geralmente se fala apenas “Artigos de Confederação”, abreviadamente. Mas não se pode esquecer que o nome total, no qual já se reflete a inseparabilidade da união, é “Artigos de Confederação e União Perpétua”.
Desses artigos, o de nº 1 estatui literalmente que “o título desta Confederação será Os Estados Unidos da América” e, pelo artigo 2o, vê-se que os Estados assim unidos continuam soberanos, livres e independentes, embora retenham para si apenas os poderes, jurisdições e direitos que não foram por sua Confederação delegados expressamente ao Congresso dos Estados Unidos. Muitos desses poderes são os mesmos que foram delegados de novo, ao mesmo Congresso dos Estados Unidos, pela Constituição federal a seguir assinada. A comparação mostra que os artigos dessa Constituição incrementam os poderes do Congresso dos Estados Unidos. Porém, mostra também que a diferença mais significativa entre a Constituição federal e os anteriores Artigos de Confederação e União Perpétua refere-se à forma de estruturação dos poderes outorgados, que passam a ser radicalmente separados em três – Legislativo, Executivo, Judiciário – conforme a proposta de Montesquieu. Com essa separação se relaciona outra diferença expressiva: a forma de eleição ou indicação dos agentes que haveriam de exercer esses Poderes em nome dos povos e dos estados que se uniam.
Na realidade, nem no seu título, nem no seu preâmbulo, em nenhum tópico a Constituição dos Estados Unidos fala em federação. Apenas deixa expresso em seu preâmbulo que visa a “formar uma união mais perfeita”, o que – à luz daquele momento histórico, bem como dos poderes que então foram outorgados aos constituintes – só pode ser interpretado como sendo aperfeiçoar a confederação até um grau maior de integração. Depois é que essa integração veio a se tornar uma realidade profunda e irresistível, graças à ação dos Poderes constituídos, sobretudo do Judiciário, continuando e arrematando a ação do Poder constituinte, assim como, também, graças à ação de lúcidos e incansáveis doutrinadores. Na medida em que a integração veio a ser assegurada, é que veio a chamar-se de federação a essa confederação mais íntegra, decretando definitivamente o que já estava garantido historicamente, até mesmo pelas armas da Guerra de Secessão: a redução da soberania dos estados a um status de menor ou mera autonomia.
De tudo isso não se pode concluir senão uma correlação. A saber: o que se tem chamado de soberania e de autonomia são conceitos rigorosamente relativos entre si. A soberania não é senão um grau maior de autonomia, havendo de uma para outra uma passagem gradual, que nem sempre é percorrida e que não depende da adoção de uma Constituição.
Em verdade, cada processo histórico tem a sua individualidade, a sua singularidade. Assim, do mesmo modo que, quando foi outorgado um status de soberania aos estados da federação brasileira, na realidade eles jamais chegaram a esse status de autonomia, também é mera precipitação antever que, inversamente, a outorga de uma Constituição à União Européia determinará a redução da autonomia de seus estados até o grau de privação da soberania. Nada autoriza essa previsão.
Ao contrário, previsível é que os Estados europeus mantenham em um plano institucional superior as suas soberanias, apenas as compartilhando em planos operacionais inferiores. É o que acontecerá, mesmo se eles cederem mais alguns de seus poderes em prol de sua união, ao firmarem entre si uma Constituição, que será em sua essência um pacto, como o foram os tratados anteriores, ainda que seja um pacto mais profundo e perfeito.
Aplique-se aqui o mesmo que disse John Locke sobre o poder que ele chamou de federativo: “se a coisa for entendida assim, sou indiferente quanto ao nome”. Ou seja: desde que se entenda o que o fato é, pouco importa o nome que se lhe dê.
Desse modo, com referência aos estados que estão se unindo na Europa, mesmo que se denomine Constituição o seu novo estatuto jurídico e mesmo que essa Constituição até abandone o nome de União Européia para chamá-los de Confederação, ou de Federação Européia, ou até de Estados Unidos da Europa, nada importará o seu nome, nem o de seu estatuto jurídico, pois o fato é que uma Constituição, no presente momento histórico, não constituirá um novo Estado a partir dos Estados europeus. Por quê?
Simplesmente porque ainda não chegou a hora. Na Europa de agora não há como constituir um só Estado a partir de estados tão díspares, sobretudo tão discrepantes em suas próprias constituições. Esta é a realidade européia. Este é o momento histórico. No entanto, mesmo que a Constituição européia não redunde, como não redundará, numa forma de Estado, ela resultará – como deve resultar – numa forma de união mais perfeita de estados, constituindo com eles uma sociedade política mais íntegra, pois esse é o resultado próprio de uma Constituição.
A Constituição jurídica nem sempre causa a perda da soberania dos estados por ela reunidos, mesmo quando correlacione mais perfeitamente as suas soberanias e estabeleça por entre as soberanias assim relativizadas, que eles não perderão, uma soberania assim compartilhada, que eles ganharão. Soberania compartilhada, eis a chave da questão político-jurídica que aflige a Europa atual, no curso do seu processo de constitucionalização.
Aberta por essa chave, a Constituição européia constituirá uma entidade política nova, mas sem constituir um novo Estado, na história do direito político ocidental. É de perguntar se essa Constituição será um estatuto confederal ou federal ou ... Mas a resposta é uma só: pouco importa o nome, desde que se entenda o que será o fato que resultará. E este não será um superestado. Será uma sociedade política inédita, baseada em uma nova forma de soberania – a soberania compartilhada – que será soberania, apesar de ser compartilhada.
Assim advirá uma sociedade que a história só poderá batizar depois que ela vier. Mas, enfim, uma coisa é certa: não faltará ao Século XXI um novo Maquiavel, que batize com um nome adequado essa nova forma de sociedade política consolidada por um novo tipo de Constituição e definida por uma diferença que lhe será específica: a soberania compartilhada.
Dessa maneira, no início do século XXI, acontecerá com a Europa o mesmo que aconteceu com o Estado, no início do século XVI. Acontecerá o mesmo que se deu com o Estado, sim, mas sem acontecer um Estado.
(*) Texto básico da palestra proferida no dia 22 de agosto de 2003, no 12o Encontro Nacional de Direito Constitucional, realizado no Salão Nobre da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, sob patrocínio do Instituto Pimenta Bueno – Associação Brasileira dos Constitucionalistas.