Reformar a Previdência Social no Brasil implica modificar preceitos da Constituição federal brasileira, com eventuais repercussões sobre os direitos dos contribuintes previdenciários e, particularmente, sobre os direitos adquiridos dos servidores públicos federais, estaduais e municipais. O que impõe principiar por um rápido estudo geral a respeito da modificação constitucional.
As normas constitucionais são originárias ou originadas. As primeiras, elaboradas pelo Poder Constituinte, estão na origem da Constituição. As segundas, originadas das originárias, as reformam e, por isso, devem seguir os preceitos por elas fixados, sobretudo se a Constituição for de um Estado de Direito.
Não se confunda Estado de Direito com Estado de Legalidade. Neste, impera o legalismo, forma sutil de autoritarismo, na qual o espírito autoritário se encarna na própria lei. Impõe-lhe o conteúdo político que convém às autoridades do momento e exige que ela seja cumprida à risca, por mera interpretação literal. Não importa que daí sobrevenha um estado de injustiça, pois a lei se justifica por si mesma, segundo a máxima de que lei é lei e tem de ser cumprida. Daí, por que o Estado de mera legalidade convive até com situações que, decorrentes de leis encomendadas, na aparência são legais, embora na verdade não o sejam, como as aposentadorias milionárias, que passam do texto constitucional. Para acabar com elas, não é preciso reformar, mas basta cumprir a Constituição.
Que a lei tem de ser cumprida, todos nós sabemos e queremos. Mas, não de qualquer modo, porém para realizar a justiça e assegurar os direitos justamente adquiridos, o que é um dos fins maiores do Direito e do Estado e, portanto, do Estado de Direito e, ainda mais, do Estado Democrático de Direito. Que democracia haverá, que Direito se praticará, se o próprio Estado pisotear a sua Constituição, para atender aos interesses dos poderosos que o governam em um momento de sua história?
Eis por que as reformas constitucionais devem seguir parâmetros que respeitem o Estado de Direito e não ofendam os princípios constitucionais que fundaram na história e mantêm na atualidade a sua democracia. E um desses parâmetros principais ou princípios parametrais do Estado de Direito é a irretroatividade da lei nova. Esta produz efeito imediato e geral, na data em que entra em vigor, mas sem retroação. Sendo este um princípio de todo o direito, aplica-se às reformas da Constituição. Mas qual é o limite que se apõe ao efeito imediato e geral da lei nova para impedir sua retroação?
Por sólida tradição, esse limite-garantia é o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Mas essa restrição à irretroatividade da lei não decorre somente do direito tradicional, nem apenas da lei ordinária. Muito mais a impõe o direito constitucional. É garantia estampada no inciso XXXVI do artigo 5o da Constituição federal, onde se lê que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Aí se reproduz como garantia constitucional o que está na Lei de Introdução ao Código Civil (artigo 6o) e, desde há muito, constitui uma sólida tradição da cultura jurídica brasileira.
Historicamente, enunciar “direito adquirido, ato jurídico perfeito, coisa julgada” atendeu à necessidade de pôr marcas concretas para garantir eficácia ao princípio da irretroatividade da lei, completando uma evolução iniciada no direito romano, que culmina agora na integração entre esses três elementos. Os três se completam, formando um conjunto de garantia, pois o direito adquirido resulta de um ato jurídico perfeito ou de uma coisa julgada. Assim, o direito adquirido sumariza a essência dessa garantia tradicional, legal e constitucional. Da evolução histórica resultou assim como a lei e a Constituição confirmam que, em suma, o limite da retroatividade das leis consiste, essencialmente, no respeito ao direito adquirido. Em síntese: não retroagir é acatar o direito adquirido e, portanto, a contrario sensu, necessariamente, violentá-lo é agredir a tradição cultural, a lei positiva e a Constituição superior da Nação brasileira e do Estado em que ela se organiza.
A Constituição do Império (artigo 179, inciso III) e a Constituição republicana de 1891 (artigo 11, item 3o) já proibiram leis retroativas, taxativamente. É antiga entre nós, desde aí, a natureza constitucional dessa garantia, o que lhe dá maior vigor aqui do que nos países onde é ela apenas preceito de direito civil, de lei ordinária. Mas, de início, apesar de ser vigoroso por ser constitucional, o princípio da irretroatividade era vago, abstrato, geral. A fim de efetivar o vigor, cumpria restringir a amplitude: definir o conteúdo do princípio. A definição veio com a Constituição de 1934. Esta (artigo 113, item 3) preceituou pioneiramente: “A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.”
Esse preceito foi olvidado pela Carta autoritária de 1937. Ele não convém ao autoritarismo. Por isso, quando Vargas baixou o Decreto-lei nº 4657, de 1942, para substituir a lei original de introdução ao Código Civil, deixou expressa a ressalva autoritária contra o direito adquirido. Decretou a quebra fácil da garantia: “A lei em vigor terá efeito imediato e geral. Não atingirá, entretanto, salvo disposição expressa em contrário, as situações jurídicas definitivamente constituídas e a execução do ato jurídico perfeito.” Essa ressalva mostra que, a serviço do autoritarismo, a lei – e até um mero decreto-lei ou medida provisória, sem nenhum aval da representação popular – podem desconstituir um direito que fora adquirido por ato jurídico perfeito ou por coisa julgada.
Superando essa possibilidade autoritária, com a volta do regime democrático, esses três elementos readquiram valor de garantia constitucional em 1946, o que impôs retirar aquela ressalva anteposta ao Código Civil, dando-se à sua Lei de Introdução uma nova redação, consentânea com a cultura e o direito brasileiros. Na realidade, essa garantia só foi excepcionada por regimes autoritários. Além do Estado Novo getulista, o regime militar de 64 também quebrou, sob o império dos atos institucionais, o princípio da irretroatividade das leis sumarizado no respeito ao direito adquirido.
É de frisar que no Brasil, diversamente de outros países, como a França e a Itália, o respeito ao direito adquirido, exatamente por ser garantia constitucional, impõe-se a todos os Poderes constituídos, a começar do Legislativo. Não é mera lei ordinária, que se impõe ao Judiciário, podendo ser reformada pelo Legislativo ou por medida provisória do Executivo. Tem status constitucional. E aqui está a chave que fechou as portas da jurisprudência para a tese de que o direito adquirido não prevalece contra leis de ordem pública. Prevalece, sim, porque é garantia constitucional, imposta a todos os Poderes, sobretudo ao Legislativo, proibindo que a lei prejudique o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.
Mas aí o termo “lei” abrangeria somente as normas legais stricto sensu? Não. Essa garantia constitucional atinge todas as normas infraconstitucionais, sobretudo as espécies normativas primárias, previstas diretamente pela Constituição (artigo 59), que inclui entre elas expressamente as emendas constitucionais e, desse modo, deixa todas elas igualmente submetidas ao princípio geral da irretroatividade, o qual, no fundo, garante a própria Constituição. Realmente, se pudesse qualquer espécie infraconstitucional – e emenda é elaborada infraconstitucionalmente – subverter direitos e garantias constitucionais, incidindo sobre qualquer fato em qualquer tempo, até modificando a juridicidade consumada antes de existir a norma nova, então se instauraria o caos jurídico sob o teto da Constituição escrita.
Aí está a razão por que não se pode equiparar o poder de constituir com o poder de reformar a Constituição. Este produz normas constitucionais por delegação daquele. Não é constituinte, mas delegado do constituinte. Não pode chegar aonde não chegam os poderes que lhe foram delegados. Tem de respeitar o núcleo irredutível da Constituição, firmado nos incisos do § 4º do artigo 60. Não pode prejudicar os direitos, nem as garantias constitucionais dos direitos, entre as quais está a inviolabilidade do direito adquirido, do ato jurídico perfeito, da coisa julgada.
Há muito tempo venho dizendo que não existe entre nós poder constituinte de revisão, de emenda, de reforma. O Constituinte não delegou a um Constituinte (pois não existe delegação a si mesmo), mas sim ao Congresso Nacional a tarefa de reformar a Constituição e, para tanto, impôs procedimento especial. Tanto é um poder de reforma exercido pelo Poder Legislativo sob delegação do Poder Constituinte, que este inseriu a emenda no Processo Legislativo (artigo 59). A doutrina é que transformou esse procedimento ou poder de reforma em constituinte derivado. Não existe um tal poder constituinte constituído. O Congresso Nacional, mesmo quando reforma a Constituição, não é poder constituinte, mas apenas poder constituído. Nada constitui por força própria, em nome próprio. Apenas age por delegação do Poder Constituinte que o legitimou na origem da Constituição. Por isso, não pode quebrá-la, sob pena de perder a legitimidade para reformá-la. Não pode mudá-la fora dos limites e procedimentos por ela estabelecidos. Se isso fizer, não estará fazendo reforma, mas revolução ou golpe contra a Constituição. Assim, se o Constituinte veda prejudicar – tender a abolir – as garantias individuais, incluindo-as no núcleo irredutível da Constituição (inciso IV do § 4o do artigo 60), e se o direito adquirido é garantia constitucional, então feri-lo é dar golpe na Constituição.
Firmado nesses termos o princípio, busquem-se as regras que o concretizam ante uma norma que entra em vigor. Perante ela, há fatos pretéritos (já passaram), pendentes (estão passando) e futuros (ainda não começaram a passar). Aplicado o princípio da irretroatividade, a regra geral é: a reforma não atinge em nada os fatos pretéritos, atinge em tudo os fatos futuros, atinge em parte os fatos pendentes. Mas, destes, que parte é atingida?
Há pendências de aquisição (pendentia acquisitione) e de realização (pendentia exercitatione). Na primeira categoria, os direitos ainda dependem de implemento de alguma condição aquisitiva. Aqui a reforma atinge a causa de aquisição do direito e, no quanto atingir, modifica as condições aquisitivas, para melhor ou pior. Na segunda, os direitos dependem apenas de realização (execução ou exercício) pelo titular que os adquiriu ou por um seu representante ou sucessor. O direito está adquirido, pois estão atendidas todas as condições aquisitivas. Apenas não foi exercitado. Mas sua execução e seu exercício estão compreendidos na sua aquisição, sob pena de ser adquirida uma coisa e recebida outra, o que seria fraude do próprio direito. Ele deve ser exercitado nas mesmas condições em que foi adquirido. Sem nenhum detrimento ou abatimento. Daí decorre a inconstitucionalidade da tributação dos inativos, que se pretende impor pela atual Reforma da Previdência e que, se imposta, resultará numa agressão ao direito adquirido dos servidores públicos que já se aposentaram ou têm plenas condições de se aposentarem.
Portanto, duas regras especiais completam a regra geral: se o direito se enquadra como pendentia acquisione, ele não está adquirido quanto às condições ainda pendentes; mas, se ele apenas remanesce como pendentia exercitatione, está adquirido em todas as condições que determinam sua execução e seu exercício conforme a lei anterior, mesmo que pendente de termo prefixado ou condição preestabelecida para ser exercitado.
Eis as normas – o princípio e as regras – de toda e qualquer reforma constitucional, as quais se aplicam também à Reforma da Previdência. São normas de direito intertemporal. O direito intertemporal, dito também direito transitório ou direito de transição, é o setor do Direito que dispõe normas jurídicas – princípios e regras – destinadas a disciplinar a transição no tempo de uma normação jurídica à outra que a sucederá, evitando ou resolvendo as agressões jurídicas e os conflitos de leis possíveis ou havidos nessa evolução. Fora do direito intertemporal, cujo fundamento está na própria Constituição, o resultado será que, em vez de reforma constitucional da Previdência Social, haverá golpe contra a Constituição e contra o Estado que ela instaura (artigo 1º) como Democrático de Direito.
(*) Texto básico da palestra proferida no dia 24 de abril de 2003, no debate sobre “As questões previdenciárias e tributárias e a ética no serviço público”, realizado no Teatro Cad´Oro, em São Paulo, S. P., sob patrocínio do Sindicato dos Agentes Fiscais de Rendas do Estado de São Paulo - SINAFRESP. Esta palestra foi reproduzida, sob o título “A reforma da Previdência Social no Congresso Nacional”, no dia 2 de junho de 2003, no 1o Ciclo de Seminários, realizado no Auditório Franco Montoro, em São Paulo, SP., sob o patrocínio da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo. Foi reproduzida, ainda, no debate sobre “A Reforma Previdenciária”, realizado no Auditório da AFRESP, em São Paulo, S. P., sob patrocínio do Sindicato dos Agentes Fiscais de Rendas do Estado de São Paulo - SINAFRESP.