Qual é o nó górdio com o qual se atou de maneira confusa o sistema misto brasileiro de controle da constitucionalidade?
Originariamente, a república brasileira adotou o modelo norte-americano inspirado por Marshall, apenas suprindo a ausência do stare decisis pela resolução do Senado. Contudo, mediante a Emenda nº 16 à Constituição de 1946, introduziu-se no Brasil uma via direta de controle de constitucionalidade em tese. Na esteira da chamada representação interventiva, criada pela Constituição de 1934 e presente na Constituição de 1946, essa via direta foi introduzida com o nome e a natureza – não de uma ação – mas de uma representação – dita representação por inconstitucionalidade. Diante de uma suspeita de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, o Procurador-Geral da República, como chefe do Ministério Público Federal e, portanto, na qualidade de custos legis, representava ao Supremo Tribunal Federal, ao qual cabia apreciá-la na qualidade de custos constitutionis.
Leia-se – com o espírito desarmado – leia-se só o que está escrito naquela Emenda de 1965 (e que persistiu na Constituição de 67 e na Emenda nº 1 de 69). O juízo político e o dedo técnico que a fizeram sabiam o que queriam. E o disseram claramente. Repito: basta ler – sem prevenção gerada por influência da doutrina posterior – o que está escrito. Não se cuidava de ação proposta para julgamento, mas de representação encaminhada para apreciação. O feito dever-se-ia processar na forma de uma representação: sem "autor", nem "réu", sem assumir "forma de contraditório", nem "garantia de ampla defesa", pois não se tratava de pôr a lei no banco dos réus e julgá-la pelo processo judicial tradicional, que não teria nenhum cabimento no caso. Nenhum mesmo.
Levantada pelo Procurador-Geral a suspeita de inconstitucionalidade, mediante a representação por ele feita em nome da sociedade ao guardião da Constituição, este a apreciaria e, para tanto, na medida do necessário, ouviria opiniões e colheria pareceres, até mesmo em audiência pública, e formaria sua convicção, e decidiria sobre a inconstitucionalidade. Esse seria o procedimento adequado a uma representação.
Entretanto, a doutrina processualista – que então pontificava – logo enxergou nessa representação o despontar de uma ação judicial, inicialmente definida como ação direta de declaração de inconstitucionalidade. Frise-se: ação de declaração. Para viabilizá-la, o Procurador-Geral da República seria o autor, dotado de legitimatio ad causam extraordinária, verdadeiro substituto processual da sociedade, agindo contra um réu, que só poderia ser o impugnado. A ser defendido por quem? A Constituição de 88 "resolveu" a questão, impondo ao Advogado Geral da União defender a lei ou ato normativo impugnado, devendo para isso ser citado, mesmo quando essa defesa fosse contrária ao interesse da União que, a esta, sim, lhe cumpre defender.
Nessa transformação de uma simples representação em verdadeira ação judicial direta e declaratória de inconstitucionalidade principiou o nó górdio. A teoria e a prática esqueceram-se de um detalhe importante: nesse tipo de feito o Supremo Tribunal Federal funciona eminentemente como corte constitucional e, como tal, profere decisões de natureza político-jurídica, não singelamente jurisdicionais, cujo efeito não é meramente declaratório, mas sim efetivamente desconstitutivo, devendo ser – exatamente por ser assim – graduado e modelado em sua compreensão e extensão no tempo e no espaço, em consonância com a necessidade "P"olítica que enforma a decisão. Obviamente, política com "P" maiúsculo: a única que pode enformar decisões de qualquer tribunal, sobretudo o que atua e quando atua como Corte Político-Jurídico-Constitucional.
Em verdade, toda decisão sobre a constitucionalidade tem um teor político inafastável, como tudo o que se refere à Constituição e ao direito constitucional, como ocorre, por exemplo, com o poder constituinte. Em qualquer sistema, toda a decisão sobre a constitucionalidade tem ingredientes políticos. Até nos Estados Unidos se admite excepcionalmente que o ingrediente político relativize a princípio da retroação ex tunc, como já aconteceu em vários casos, dos quais se fixou como leading case o célebre caso LIKLETTER v. WALKER, no qual a Suprema Corte reconheceu que a questão da retroatividade ou prospectividade dos efeitos do judicial review não corresponde a um princípio exarado na Constituição, mas a uma prática da jurisprudência, que, portanto, pode ser por ela alterada, se necessário.
Contudo, mesmo depois que admitiu a necessidade política, e com essa admissão abrandou o rigor inicial do efeito ex tunc, o sistema norte-americano persiste sendo essencialmente jurisdicional, dada a sua essência casuísta, em que – em face do caso concreto – o juiz meramente decide qual a norma aplicável, mas nem de longe legisla negativamente, não traça uma regra jurídico-política que anule e suspenda em geral, erga omnes, a lei. Apenas deixa de aplicá-la in hoc casu. Mas ela pode ser aplicada pelo mesmo juiz em outros casos ou por outros juizes em casos semelhantes.
Já no sistema de controle concentrado e direto ocorre exatamente o inverso. Cedendo ao imperativo político, a decisão de inconstitucionalidade como que legisla negativamente, anulando a lei erga omnes a partir de certo momento politicamente fixado. Nesse efeito, portanto, os sistemas americano e europeu são radicalmente diferentes.
Entretanto, porque esqueceu esse "detalhe", que no fundo não é mero detalhe, mas faz parte da própria essência dos sistemas, o Brasil deu aos acórdãos das ações diretas de inconstitucionalidade eficácia declaratória de nulidade e, por isso, dotada necessariamente de efeito "ex tunc", o que não é próprio do modelo europeu (ação direta) que se adotava, mas sim do modelo americano (argüição incidental) já adotado. Esse "ex tunc" imposto necessariamente à ação direta contaminou e deturpou o sistema em implantação, tumultuando sua mistura com o sistema difuso já implantado.
Portanto, o efeito necessariamente "ex tunc" foi o nó górdio com o qual se amarrou o sistema europeu com o americano, no Brasil, deturpando-o. A ação direta – contaminada pela tradição brasileira seguindo o princípio norte-americano de que todo ato inconstitucional é um natimorto – assumiu no Brasil um efeito necessariamente declaratório "ex tunc", que lhe contraria a natureza. Instalou-se aí a contradição, que passou a atormentar o sistema misto brasileiro, que – além de misto – assim se tornou confuso. A confusão foi tanta, que até se chegou a reclamar a interferência do Senado para produzir o efeito erga omnes já inerente à ação direta.
Na realidade, para desfazer toda a confusão, bastaria um simples dispositivo constitucional, uma emenda à Constituição, assegurando a possibilidade de o Supremo graduar no tempo – ex tunc, ex nunc ou pro tempore – as decisões tomadas em ações diretas, as quais, de resto, de per si, já são erga omnes.
Mas, em vez de assegurar essa possibilidade de graduação do efeito, em verdade deixou-se a contradição crescer, ao mesmo tempo que também crescia absurdamente a facilidade de legislar, gerando caudal de leis e medidas provisórias. Aquela contradição se combinou com esta pletora, resultando em instabilidade e insegurança jurídicas. Logo que surgia alguma lei ou medida provisória, feita às pressas, com o açodamento que a facilidade legislativa propicia, todos – em vez de cumpri-la – ficavam à espera da inconstitucionalidade.
Em face de tais vacilações sobre a constitucionalidade, naturais em um sistema misto abalado pela contradição de ter sempre efeito ex tunc, como se não fosse misto, logo se entendeu necessário criar uma esdrúxula ação declaratória de constitucionalidade, para declarar o que já estava declarado como presunção juris tantum, por efeito necessário da promulgação da lei: a sua constitucionalidade. Embora esdrúxula, pelo menos essa ação declaratória de constitucionalidade foi criada constitucionalmente: por emenda constitucional. Mas não parou aí a confusão.
Agora, mediante obra legislativa ordinária de duvidosa constitucionalidade, regulamentou-se a ação direta de inconstitucionalidade (ADIN) e a ação declaratória de constitucionalidade (ADECON) pela Lei nº 9868, de 10/11/99, bem como – a título de regulamentar o que deveria ser uma simples argüição de descumprimento de preceito fundamental decorrente da Constituição – na verdade se criou pela Lei nº 9882, de 3/12/99, uma nova ADIN, com alcance e efeitos não previstos e, portanto, não autorizados pela Constituição. Essa "ADIN DISFARÇADA DE ARGÜIÇÃO" extrapola a regulamentação legislativa que o § 1o do art. 102 da Constituição prevê para si mesmo.
Ambas as leis estão crivadas de inconstitucionalidades.
A Lei nº 9868/99, por dar à ADIN e à ADECON efeitos não previstos na Constituição (como o contido no § 2o do art. 11 e, aberrantemente inconstitucionais, os contidos no parágrafo único do art. 28) e, assim, invadir e subverter nessa parte a competência normativa própria do Poder Constituinte. Essa Lei, além de "inovar", até mesmo "corrige" a Constituição, como faz quando "supre" o "esquecimento" do Constituinte de legitimar o Governador do Distrito Federal para propor ADIN.
Já a Lei nº 9882/99 parece-me no todo inconstitucional, por transformar uma simples argüição de descumprimento de preceito fundamental em verdadeira ação de inconstitucionalidade, dando-lhe substância e forma, eficácia e efeitos não previstos, nem sequer desejados pela Constituição para a ADIN, como é caso do controle de leis municipais frente à Constituição Federal e da eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público.
O Constituinte criou as ações que entendeu necessário criar para controlar a constitucionalidade de leis e atos normativos na Federação brasileira, alcançando até a omissão inconstitucional. Para esse controle, não quis mais nada além do que criou, com a substância e a forma, a eficácia e os efeitos com que criou. Por isso mesmo, quando previu a argüição de preceito fundamental decorrente desta Constituição não criou aí nenhuma outra ADIN para controlar constitucionalidade diante desta Constituição. Criar ADIN depois de já ter criado ADIN seria um absurdo rebarbativo e contraditório. O que criou foi outra coisa: uma argüição de descumprimento, talvez para suceder à anterior argüição de relevância (EC nº 1/69, art. 119, § 3o, c), com o fito de reduzir a questão federal ao descumprimento de preceito fundamental decorrente da Constituição. Mas, mesmo se não for isso, seja o que for, é uma argüição e não uma ação. Uma argüição, embora seja objeto de processamento e julgamento, não tem natureza de ação. É meramente um accessorium in alterum incidens e não um principale in se. Jamais poderia ser transformada em uma ação direta para controle principal da constitucionalidade.
Diante da pletora legislativa propiciada pela facilidade legislativa, o efeito vinculante combate o sintoma e não a causa. Não vai desentulhar o Judiciário, nem evitar superlotação do Supremo Tribunal Federal. Não é por aí o caminho. Melhore-se a autenticidade da representação parlamentar. Por exemplo: vede-se que parlamentares federais possam licenciar-se para ocupar outros cargos até estaduais e municipais (em verdade, quando o povo elege um senador ou deputado, ele o elege para ser senador ou deputado e não outra "coisa", para a qual talvez não o elegesse); permita-se que o povo escolha os suplentes de senadores e não seja obrigado a aceitar "desconhecidos eleitos automaticamente", que depois assumem, quando os titulares desertam do mandato recebido do povo; enfim, revoguem-se, além desses, outros dispositivos (como o teto e o piso de representantes por estado-membro na Câmara dos Deputados), que distorcem a representação democrática e o processo legislativo no Brasil.
Efeito vinculante não é solução: é paliativo. Fecha o pronto-socorro da cidadania. Os juizes de primeiro grau têm sido o único socorro de que se podem valer os cidadãos, quando surpreendidos – e o são quase todas as manhãs – por emendas constitucionais, leis complementares, leis ordinárias e, acima de tudo, medidas provisórias eivadas de inconstitucionalidades, massacrando direitos humanos fundamentais. É preciso corrigir a causa: fechar as torneiras da legislação fácil, açodada, apressada e, por isso mesmo, freqüentemente inconstitucional, como é o caso das duas leis supracomentadas.
O certo é combater as causas e não comprimir os efeitos. Basta revogar ou, mais rapidamente, proscrever pelo controle leis inconstitucionais como essas duas, restaurar a dignidade e a normalidade do processo legislativo e desfazer o nó górdio com que se atou no Brasil o sistema europeu com o americano de controle da constitucionalidade. Para desfazê-lo, basta reconhecer ao Supremo Tribunal Federal a possibilidade de, ao julgar a ADIN (que não precisa nem deve ser senão de um só tipo básico), anular a lei ou ato normativo pro tempore, recuando ou avançando no tempo os efeitos da decisão, conforme seja "P"oliticamente necessário. O efeito vinculante já estará aí implícito: erga omnes.